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domingo, 25 de julho de 2010

DOIS CONTOS DE TATIANA CARLOTTI

Tatiana Carlotti - [Dois contos]

Dois Contos de Tatiana Carlotti
CONTO I
Cachaça

Meu avô gostava de fumar sentado nos degraus da varanda. Pouco dizia. Nossa língua era complicada demais para o italiano enraizado dentro dele. Riscava o fósforo e sumia bem ali na nossa frente. Às vezes, minha avó gritava e ele abria os olhos para confirmar se continuávamos lá. Éramos apenas nenas. Um reino de maria-chiquinhas, congas nos pés, saias prensadas.

Naquela época, meu pai trabalhava no correio e minha mãe ensinava datilografia para as moças ricas do Klabin. Ficávamos ali, boneca de pano, jardim, peteca, carrinho e a suspeita que meu avô não sabia direito quem era quem entre nós. Minhas irmãs não se importavam, tinham nojo quando o velho pigarreava e cuspia no chão do quintal. Eu não conseguia tirar os olhos daquele cuspe, vontade de passar a roda do carrinho por cima.

O velho vendia cachaça. Vinha freguês até de Interlagos conhecer sua pinga com pitanga. Paravam a Kombi lá fora e o barulho dos passos e os vidros esverdeados no engradado. Meu avô cobrava caro e quando não queriam pagar o preço certo, expulsava todo mundo, palavrão ladeira abaixo. Depois que iam embora, minha avó desabava: Và fan´culo, Valentim, và fan´culo. Ele retrucava calado e se trancava no barracão. Dinheiro nunca foi razão para o meu avô.
Fonte:  Revista ZAP
O barracão era todo de madeira. Lá dentro, dezenas de barris de diversos tamanhos e aromas. Eu lembro do cheiro forte e da luz sempre suspensa. Era álcool misturado à madeira úmida e à ferrugem das ferramentas em seqüência. De tudo o que me foi proibido até agora, nada se compara ao cheiro daquele lugar.

Talvez não fosse uma proibição verdadeira. A porta sempre esteve aberta e lá dentro, ele fingia não me ver cantando entre os barris. Meus dedos ficavam pretos de pó e eu
 tentava decifrar as letras pintadas num vermelho vivo. De costas para mim, meu avô escrevia em silêncio. O corpo encurvado no banquinho e depois de pé, rabiscando uma coluna de números na lousa verde. Minhas irmãs brincavam lá fora. Minha avó cozinhava alguma coisa. Eu e meu avô, sem saber, estávamos presos naquele aroma.

Então, numa daquelas tardes, quando eu saia do barracão, ele largou o giz e se virou imenso. Os olhos dele eram de uma transparência assustadora. Meu avô perguntou quantos anos eu tinha. Eu respondi e peguei as suas mãos estendidas. Entramos no corredor e diante de um barril, ele despejou num copinho um dedo de pinga para mim.

Senti o odor que evaporava do copo e de repente, era aquele o cheiro que vinha dele. Quando o líquido amoleceu a minha língua, meus olhos se encheram d´água e eram as coisas todas de uma quentura amarga. Meu avô, numa felicidade estranha, deu um tapa de homem para homem nos meus ombros. Depois, arregalou as sobrancelhas e bebeu a sua dose num só gole.

Nós sorrimos cúmplices e finalmente, o velho perguntou qual era o meu nome.

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Conto 2

Anéis de Fumaça

Sete e trinta da noite. Elis & Tom, meia luz e o riscar do fósforo na caixinha. Cada cigarro tem um sabor diferente, João sempre dizia. Eu fumo um por dia, no mesmo horário, sentada na minha janela. Às vezes, alguém acena da rua e eu finjo que não vejo. Às vezes, o telefone toca e eu finjo que não estou. É o ir e vir da fumaça. É a cidade que trago dentro de casa.

Da primeira vez, eu não sabia. Era a vertigem da fumaça e a infinidade de luzes e apartamentos. Eu me apoiei no parapeito da janela, estava tonta, mas depois que meus olhos acostumaram, nunca mais dormi na penumbra. Deixei a escuridão do meu quarto na Vila Brasilina, lugar dos nomes próprios, das boas e más companhias e decidi morar no centro, porque a luz é um fato nessa cidade, mas João achava isso besteira. Ele dizia que de manhã era tudo cinza, faltava cor, faltava vida e chacoalhava a latinha de spray nas mãos, brincando de pintar estrelas nas minhas pernas. Vira e mexe, encontro os desenhos que ele fazia em mim nos muros da cidade. Dá um aperto.

Da segunda vez, eu senti a nicotina. Era poeira e asfalto molhado. Eu sentei no meio fio até a náusea passar. É desconcertante ser um corpo e só um corpo, no meio desse concreto todo. São texturas que se estranham. Não são morros, não são folhas, não é nada que nasça, cresça, reproduza e morra. Não. A paisagem é a suspeita do elemento humano que a habita, mas eu jamais tenho certeza. Eu apenas suspeito atrás dos vidros uma presença, que na maior parte das vezes, é o meu próprio reflexo. Porque o concreto é um fato nessa cidade e ela foi concreta com João. Ele queria expor na Bienal, não conseguiu. Ele queria entrar na faculdade, mas precisava trabalhar. Depois foi a história do teatro experimental, o cenário que ele grafitou sem ganhar um centavo. Era noite de estréia, a gente na Treze de Maio, João me contou que o crânio do avô estava cimentado no viaduto. Que horror, a cabeça do avô nos meus pés, a mão do neto nos meus ombros.

João queria esquecer que cedo ou tarde, também estaríamos cimentados em algum arranha-céu. Ele defendia sua liberdade, queria fruir todos os tipos de arte. Nós corríamos pelos museus, teatros, cinemas, rodas de choro. Minhas mãos suavam e escorregavam das mãos dele. João nem percebia. Vem. Dava sinal para um ônibus e eu entrava esbaforida. Lembro de um dia, fila de cinema, meu reflexo no espelho e alguma coisa faltando. Era mostra no Cinesesc. Quando entramos, João me levou para sentar no bar, as luzes se apagaram e da nossa mesa, eu pude ver a tela. João envergava o corpo para entrar no filme, às vezes, seu rosto ficava escuro e eu só via a pontinha acesa do cigarro. Na saída o veredicto. Gostou do filme? Eu só queria fumar como você.

Hoje eu admito, foi João quem me ensinou a tragar. Logo nas primeiras vezes, ele fazia anéis de fumaça com a boca para eu pegar no ar. A fumaça passava pelos dedos, o cheiro ficava na pele. Ele queria dizer que nada é eterno porque o efêmero é um fato nessa cidade, mas isso, eu já sabia. Antes de ir embora, naquela maldita manhã de carnaval (as crianças andavam fantasiadas pelas ruas e borrifavam água dentro dos carros), eu perguntei: João, como se traga? Ele tirou o maço do bolso e pela primeira vez acendeu o meu cigarro. Você puxa a fumaça devagar e a deixa descer pela garganta. Tá sentindo? Não, não sopra antes. Tenta mais uma vez. Isso. Não é bom?

Então, eu percebi a semelhança. Eu tinha o cabelo bem curto e ele também. Éramos da mesma altura. Havíamos estudado em colégio municipal, filhos de pais separados, cartão de ponto, sem carro. Éramos tão iguais que eu olhei para ele e não sabia mais quem ele era. João era eu. Duas semanas depois, exausto de mim, ele soltou: Você não me acrescenta em nada. Ele estava puto porque também não conseguia me ver.

Vinte para as oito. Algumas luzes se acendem, outras se apagam. A vida média de um cigarro é de dez a quinze minutos. Foram quatro maços com João e não sei quantos sem ele. Hoje, não me lembro mais do seu rosto, a cidade apaga a memória, os carros passam, os faróis ficam verdes. Prefiro assim. Acostumei a me esquecer dos nomes e a caminhar entre estranhos na rua. Certa vez, ao acender o meu cigarro, um desses estranhos disse que o último trago sempre se parece com o primeiro. Ele tinha razão. Deve ser por isso que fumar vicia tanto.

Tatiana Carlotti
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